Tales Agra
Psicanalista em Brasília

“A repetição é a transferência do passado esquecido” (Freud)


Neste ensaio, Freud visa elucidar a questão do esquecimento de alguns fatos por parte do paciente em análise. Ele inicia fornecendo um pequeno panorama do que consiste a técnica psicanalítica e de como ela evoluiu, traçando um histórico dividido em três fases. Aqui, estamos em 1914, período em que a psicanálise já encontrava-se solidamente construída.

Na primeira fase, a técnica parecia um tanto quanto médica demais. Bastava hipnotizar o paciente e reproduzir o contexto psíquico em que a pessoa estava no momento em que o sintoma se formou. O foco do tratamento estava neste momento: o da formação do sintoma. Embora não seja o centro do enredo, o romance de Irvin Yalom, “Quando Nietszche Chorou”, retrata um pouco dessa fase em que a catarse, uma “descarga mediante atividade consciente” (Freud, 2010, pg 194), era o principal objetivo. Para uma melhor ilustração desta primeira fase, recomendo também a leitura do caso Elisabeth Von R., primeira histérica analisada por Freud, segundo atribuição do próprio. O objetivo era, então, recordar e ab-reagir (libertar-se de um material reprimido).

Na segunda fase, ocorre a renúncia de Freud à hipnose. Manteve-se o foco no momento da formação do sintoma, mas agora sem o instrumento da hipnose. Assim, o objetivo principal era que, por meio de interpretações, o analista pudesse descobrir o que o analisando não conseguia recordar. Era quase como se o analista fosse um mágico, ou um ser de um poder sobrenatural. Acredito que muitos ainda veem a psicanálise assim (inclusive alguns analistas).

Na terceira e consolidada fase, deixamos o paciente falar livremente. Enunciamos para ele a regra fundamental: falar tudo que lhe venha à mente, mesmo que pareça sem importância. Não há um assunto específico a ser discutido. Nas palavras de Freud: “Por fim, se formou a técnica coerente de agora, na qual o médico renuncia um fator ou problema determinado e se contenta em estudar a superfície psíquica apresentada pelo analisando, utilizando a arte da interpretação essencialmente para reconhecer as resistências que nela surgem e torna-las conscientes para o doente. Verifica-se então uma nova espécie de divisão de trabalho: o médico desencobre resistências desconhecidas para o doente; sendo essas dominadas, com frequência o doente relata sem qualquer dificuldade as situações e os nexos esquecidos. (…) em termos dinâmicos: superação das resistências da repressão” (Freud, 2010, pg. 195).

No restante do texto, Freud vai dizer que o paciente não esquece vivências, cenas ou impressões, mas sim as bloqueia. E que não é necessário forçar o reaparecimento delas necessariamente por meio da fala. Isso porque: “… é lícito afirmar que o analisando não recorda absolutamente o que foi esquecido e reprimido, mas sim o atua. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele o repete, naturalmente sem saber o que faz.”(Freud, 2010, pg. 200). “Devemos estar preparados, portanto, para o fato de que o analisando se entrega à compulsão de repetir, que então substitui o impulso à recordação, não apenas na relação pessoal com o médico, mas também em todos os demais relacionamentos e atividades contemporâneas de sua vida, por exemplo quando, no decorrer do tratamento, escolhe um objeto amoroso, toma para si uma tarefa, começa um empreendimento. (pg. 201, grifo meu).

E agora, tendo isto sabido, como analista e analisando lidam com a compulsão a repetição? É normal que, com o início do tratamento, o paciente tenha uma piora. Isso porque a repetição, que traz em si aspectos já internalizados da doença, se dá na vida real, presente. Quando se inicia um tratamento, sua repetição começa a ser desvendada, e sua vida presente sofre as consequências desta desorganização temporária. Então, o paciente é levado a “mudar sua atitude consciente para com a doença. (…) Ele tem de conquistar a coragem de dirigir sua atenção para os fenômenos de sua doença” (pg. 203). A metáfora que Freud usa: não se pode liquidar um inimigo que está ausente ou não está próximo o bastante. Ou seja, se a piora acontece, é porque ela é necessária, e no entanto passageira. O autor ainda afirma que a compulsão a repetição pode se revelar útil e inofensiva, se reconhecemos a ela o direito de existir e vigorar em um determinado âmbito. Esse âmbito é a transferência: “Nós a admitimos [compulsão a repetição] na transferência, como numa arena em que lhe é facultado se desenvolver em quase completa liberdade, e onde é obrigada a nos apresentar tudo o que, em matéria de instintos patogênicos, se ocultou na vida psíquica do analisando. Quando o paciente se mostra solícito a ponto de respeitar as condições básicas do tratamento, conseguimos normalmente dar um novo significado de transferência a todos os sintomas da doença, substituindo sua neurose ordinária por uma neurose de transferência, da qual ele pode ser curado pelo trabalho terapêutico. Assim a transferência cria uma zona intermediária entre doença e vida, através da qual se efetua a transição de uma para a outra” (pg. 206).

Finalmente, Freud dedica não mais que dois parágrafos à elaboração, que seria simplesmente a adaptação à resistência agora conhecida e reconhecida. É reconhecer em si aspectos dos quais não gostaríamos de saber. Isso leva tempo em análise e pode ser uma provação para o paciente e exige paciência do analista, mas é o que “tem maior efeito modificador sobre o paciente, e que distingue o tratamento psicanalítico de toda influência por sugestão.” (pg. 209).

Lindo, não?

Freud descreve parte da técnica da psicologia clínica neste ensaio. Vários autores usam o conceito de compulsão a repetição, às vezes sem identificar sua origem. Irvin Yalom, autor de vários romances e terapeuta existencial, enfatiza muito o chamado “aqui-e-agora”. Em seu livro “Desafios da Terapia”, ele se cansa de tanto falar nisso. E o que é isso? É exatamente o que Freud está descrevendo em “Recordar, Repetir e Elaborar”. Ele está falando de um padrão que se repete no sujeito e que denuncia o seu modo de funcionar. Segundo Yalom, a terapia é um microcosmo (mais visível na terapia de grupo) aonde são repetidos os padrões de comportamento do paciente. A diferença está no método. Enquanto Freud parece cauteloso quanto à remoção das barreiras da resistência, Yalom propõe uma conversa direta sobre isso. Em suas consultas, ele frequentemente pergunta  como estão as coisas entre terapeuta e paciente. Minha opinião é de que há pessoas que conseguem conversar sobre o que estão atuando. Outras não conseguirão expressar sua repetição por meio de palavras, apenas de ações, e são essas que Freud visa incluir em seu método de tratamento.

Tales Agra

Referências:

Freud, S. (2010). Recordar, repetir e elaborar. Obras Completas, VOL. 10. Ed. Schwartz Ltda, SP.

Calligaris, C. (2004). Cartas a um jovem terapeuta. Ed. Elsevier Ltda, RJ.

Yalom, I. (2005). Quando Nietzche chorou. Ed. Ediouro.

Yalom, I. (2006). Os desafios da terapia. Ed. Ediouro.

Tales Agra

Tales Agra

Leave a Comment